terça-feira, 7 de agosto de 2012

O homem nu (Fernando Sabino)


O Homem Nu
Fernando Sabino

Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  
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1) O narrador desta crônica é narrador-personagem (participa da história) ou narrador-observador (apenas conta a história)?

2) Por que o casal não poderia abrir a porta?

3) Com que objetivo o homem saiu do apartamento?

4) Nessa situação corriqueira, comum, o que acontece de inusitado?

5) Por que ele não conseguiu entrar casa novamente?

6) Por que sua mulher não abriu a porta para ele?

7) Por que ele se refugiou no elevador?

8) Releia: “E agora? Iria subir ou descer?” O que você pensou que ele iria fazer? Por quê?
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Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

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9) Por que a velha disse “O padeiro está nu!”, sem saber se ele era um padeiro?

10) Por que o final, depois de tanta confusão, surpreende o leitor?

11) Resuma o conto com suas palavras, dividindo-o em três partes:
a) A situação inicial
b) O conflito
c) A resolução final


Interpretação - Diário

16 de maio de 2012 


Que noite horrível! A pior da minha vida... Penso, repenso, choro, grito, urro, estapeio o travesseiro e começo tudo de novo. Tenho que fazer uma escolha. Uma escolha que só depende de mim. Alfredo e Bobby me querem. Dizem que me amam. Acho que só gostam de mim. Mas gostam bastante. Mais do que o suficiente pra me fazer feliz. Não posso mais ficar neste não-sei-o-que-quero... Muito bem. Vamos lá. Enfrentar de cara. De frente. Com tudo. O que quero? Quem quero?
             Nem posso choramingar tanto. Fazer tamanha cara de coitadinha, de infeliz. Afinal, tenho 16 anos e tenho dois apaixonados. De plantão. Fazendo cenas por minha causa. Quase se estapeando em público. Minhas amigas, morrendo de inveja. Me achando uma sortuda. Dois caras legais querendo me namorar firme. Por que não posso ficar com os dois? Sei muito bem por quê, portanto, vamos parar com esta bobagem.
            Alfredo não é muito bonito. É alto, magricela. Cara inteligente. De óculos. Tem 21 anos, é homem feito. Tem carro, tem dinheiro, estuda Engenharia na Poli. Está no 3º ano. Bom aluno, estudioso; responsável. Ótima pessoa. O herói da minha mãe. Aliás, o herói de todas as mães do pedaço. Me acham uma louca desvairada por não estar com ele de vez.
            Bobby também não é muito bonito. Mas tem um quê especial. Um ar maroto, bem safado. Conquistador. Todo cheio de vozes, de sussurros, um sorriso de derreter. Irresistível quando quer. Desenha bonito e passa o tempo todo com seus papéis, lápis e tintas. Nem pensa em faculdade. Vive duro e sempre se vira pra conseguir algum. Consegue, quase sempre. Na minha casa não faz o menor sucesso. É tocar a campainha que torcem o nariz. Quando telefona, se pudessem, diriam que não estou. Mas quando entra, se derretem com seu charme, suas piadas. Melhor companhia não tem.
            A verdade, acho, é que não estou apaixonada por nenhum deles. Ou não sei o que é amar. Como é que a gente se sente de verdade? O que acontece por dentro e por fora? Se soubesse, não estava nesta baita indecisão. Amanhã cedinho tenho que ter a resposta. Escolha escolhida. Ficar com um e largar o outro. Disso, não tenho dúvidas. Só disso. Mas ficar com qual?
            Queria um sinal do destino. Uma pista. Vou passar a noite em claro, esperando. Por esse sinal e porque estou uma pilha de nervos. Não vou conseguir dormir de nenhum jeito... É muita aflição, muito nervoso, muito medo de errar. Faço outra vez a listinha dos prós e contras? Dos pontos positivos e negativos de cada um deles? Por que não? Faço.


Estudo do Texto

1) O texto começa assim: “Que noite horrível!” Essa frase mostra o estado emocional da garota, que registra seu conflito no diário. Explique qual é esse conflito.

2) Por que ela acha que não tem motivos para choramingar e se fazer de coitadinha?

3) Como os dois rapazes se sentem com relação a ela?

4) O que as amigas dela pensam disso?

5) Ela diz “Por que não posso ficar com os dois? Sei muito bem por quê.” Afinal, por que ela não pode ficar com os dois?

6) Observe a lista que ela apresenta no 3º e no 4º parágrafos, com os prós e contras de Alfredo e Bobby, e responda:
a) Explique com suas palavras como é Alfredo e como é Bobby.
b) Qual deles você acha que ela deveria escolher? Por quê?

7) Quando ela teria que dar a resposta de sua escolha?

8) Por que ela acha que não vai conseguir dormir à noite?

9) O que ela resolveu fazer para decidir entre os dois?